Coronavírus: como a vacina Sputnik V se tornou um instrumento de influência da Rússia na América Latina

Por Rogerio Magno em 20/02/2021 às 19:03:36

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Quando a Rússia anunciou em novembro passado que sua vacina contra o coronavírus, a Sputnik V, era 92% eficaz, a notícia foi recebida com esperança, mas também com muito ceticismo.

O sigilo em torno dos ensaios clínicos e a "correria" criticada por parte da comunidade científica não inspiravam muita confiança, nem mesmo entre os próprios russos.

Mas não na América Latina.

Na Argentina, na Venezuela e na Bolívia — países governados por presidentes de esquerda com laços próximos ao presidente russo Vladimir Putin — a Sputnik V foi aprovada para uso emergencial.

Ao todo, essas nações já encomendaram mais de 30 milhões de doses da vacina.

No Brasil, o imunizante ainda não teve aprovação da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) para ser usado. Mas o órgão informou que vai modificar a lista de requisitos mínimos para a liberação do uso emergencial (e temporário) de vacinas contra o novo coronavírus, o que pode abrir caminho para o uso da vacina russa em breve.

Com praticamente três meses de uso da Sputnik V, as percepções sobre ela parecem ter mudado muito.

Os russos estão lentamente começando a confiar em sua vacina e sua eficácia foi recentemente endossada pela prestigiosa revista médica britânica The Lancet.

Muitos países, especialmente da América Latina, batem às portas da Rússia para negociar doses de seu promissor imunizante, e o país foi rápido em responder e oferecer seu apoio.

Especialistas consultados pela BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC, garantem que o sucesso da vacina, produzida com recursos estatais, será uma estratégia de marketing eficaz e um importante instrumento geopolítico para a Rússia em países com menos recursos.

Mas como esse cenário evoluiu tanto em apenas alguns meses?

Na Argentina, a Sputnik V já é aplicada nas campanhas de vacinação contra a covid-19

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Oportunidade para os menos ricos

"Este é um momento decisivo para nós", disse Kirill Dmitriev, diretor-executivo do Fundo Russo para Investimento Direto, o órgão estatal que financiou a vacina, em entrevista à agência de notícias financeiras Bloomberg.

O governo russo informa que muitas das 8 milhões de doses já fabricadas serão enviadas para os países que as encomendaram há alguns meses.

Uma dezena de países mostrou interesse. Entre eles estão aliados de Moscou, como Hungria ou Irã, e também um bom número de latino-americanos, como Brasil, México, Paraguai, Venezuela e Colômbia.

Na Argentina e na Bolívia, a população já começou a ser vacinada de fato com a vacina russa.

"A Sputnik V chega em um momento crucial para a América Latina", disse Vanni Pettinà, especialista em relações exteriores russas da Universidade Colegio de México, à BBC News Mundo.

"Os países da região não têm tecnologia própria para desenvolver suas vacinas nem dinheiro para comprar as caríssimas vacinas particulares aprovadas", acrescenta o especialista.

Nesse sentido, Pettinà prevê que o caráter estatal da Sputnik V facilitará sua distribuição e compra por países com menos recursos.

E esse fato, sem dúvida, também favorecerá um uso geopolítico que Putin poderá usar muito bem quando quiser.

"Por ser estatal, Putin pode literalmente decidir quantas doses dar, a que preços e para quem. E tudo isso será condicionado pelas avaliações políticas e estratégicas do Kremlin", acrescenta Pettinà.

"É claro que a Rússia usará a vacina como instrumento geopolítico para aumentar o que chamamos de 'soft power' entre Estados com menos recursos e também outras empresas privadas para as quais vende suas patentes", explica Mira Milosevich, especialista em Rússia e Eurásia do Real Instituto Elcano, think tank sediado em Madri, na Espanha.

"Durante a Guerra Fria, o soft power foi imposto com o esporte e o xadrez; agora os russos usam a vacina", acrescenta Milosevich.

Vacina russa pode ser primordial para países com menos recursos

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Erros e fraquezas dos EUA e da Europa

Enquanto as primeiras vacinas, como as de Pfizer, Moderna e Oxford-AstraZeneca, recebiam a aprovação das autoridades médicas e começavam a ser distribuídas e inoculadas, o otimismo tomava conta dos países mais ricos, que começaram a olhar mais de perto o triunfo sobre a pandemia.

Mas a realidade se mostrou mais complicada.

Os produtos farmacêuticos passaram por notórias interrupções na distribuição, especialmente evidentes na União Europeia, que há algumas semanas se envolveu em uma disputa com a AstraZeneca, após acusar a empresa de não cumprir os prazos de entrega da vacina.

Vacinas como a da AstraZeneca prometiam otimismo na luta contra a pandemia, mas a realidade se mostrou um pouco mais complicada

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"O Ocidente não tem muita flexibilidade para manejar suas vacinas porque não as controla, são produtos privados, por isso está mais exposto a chantagens de preços e contratos não transparentes", diz Pettinà.

O acadêmico aponta certos "erros e fraquezas" da União Europeia e dos Estados Unidos que a Rússia pode usar muito bem a seu favor.

"A retirada das questões de política externa dos EUA durante o governo Trump e a complexidade e lentidão da estrutura política da União Europeia abrem um espaço que o Kremlin pode usar para melhorar sua imagem e influência em países com menos recursos", explica.

"Isso é fácil de explicar, a Rússia é uma potência oportunista e tem visto que enquanto esses locais priorizam o abastecimento próprio e não podem prover aos países menos desenvolvidos, ela aproveita para levar a vacina a esses territórios, também na América Latina", concorda Milosevich.

E, mesmo na Europa, o interesse pela Sputnik V vem crescendo.

Josep Borrell, alto representante para Política Externa e Segurança da União Europeia, assegurou recentemente que a aprovação do uso da vacina pela Agência Europeia de Medicamentos — ainda em fase preliminar — "seria uma boa notícia, porque como sabem estamos diante de uma falta de vacina".

"E isso fará com que a Rússia aumente sua influência na região", completa Pettinà.

Desenvolvimento "muito rápido"

Em agosto de 2020, a Rússia anunciou que o Instituto Gamaleya estava desenvolvendo uma vacina contra o coronavírus.

A TV estatal apresentou a notícia como prova da liderança científica do país, assim como quando foi anunciado o lançamento do primeiro satélite feito pelo homem, há 60 anos.

O nome desse satélite? Sim, igual à vacina: Sputnik.

A vacina russa usa a técnica do vetor viral, contendo um vírus diferente que carrega genes do coronavírus para criar uma resposta imunológica em nosso organismo.

Apesar do exagero de que a vacina era tão eficaz quanto a da Pfizer/BioNTech e a da Moderna, ambas com percentuais de proteção superiores a 94%, os russos se mostraram desconfiados quando a vacinação em massa começou em dezembro.

Segundo Oleg Boldyrev, jornalista do serviço russo BBC em Moscou, no início da campanha havia muito ceticismo sobre a rapidez com que a vacina foi criada.

"Muitos russos suspeitavam da natureza opaca de seu registro e do entusiasmo excessivo dos funcionários do governo. O presidente Vladimir Putin também não havia sido vacinado. Nada disso ajudou a aumentar a confiança", assinala Boldyrev.

O fato de a vacina ser estatal é um fato que permitirá a Putin usá-la de forma estratégica

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Recuperação progressiva da confiança

Pesquisas recentes na Rússia indicam que, embora a confiança na vacina esteja gradualmente sendo estabelecida, ainda existe uma parcela considerável da população que não confia totalmente no imunizante e deseja saber mais evidências sobre sua eficácia.

No entanto, o estudo com os dados da eficácia da vacina publicados no periódico científico The Lancet ajudaram a diminuir essa desconfiança, embora alguns resultados de testes clínicos permaneçam indisponíveis e existam muitas perguntas as quais o Instituto Gamaleya deva responder.

Os mais críticos acusam os cientistas de não serem totalmente transparentes, mas "o endosso do The Lancet é sem dúvida um grande impulso de otimismo para a distribuição da Sputnik V em todo o mundo", diz Boldyrev.

Também deve ser observado que, embora não exija temperaturas de armazenamento muito baixas, como a vacina da Pfizer, a Sputnik V precisa ser estocada e transportada a 8°C, o que pode dificultar sua distribuição, como de fato acontece fora das grandes cidades na Rússia.

Aos poucos, russos estão ganhando confiança em sua vacina, informa o serviço russo da BBC

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De acordo com uma análise independente, menos de 1,5 milhão de russos receberam a primeira dose da vacina. Nesse ritmo, levaria cerca de três anos para vacinar metade da população do país, que hoje é de 145 milhões de habitantes.

Longa história do poder científico russo

A Sputnik V não será a única vacina russa contra o coronavírus. Existem mais imunizantes que os cientistas russos estão patenteando.

"Mais uma vez, certamente haverá dúvidas sobre a veracidade dos dados científicos que acompanham os anúncios de eficácia", diz Boldyrev.

Apesar das dúvidas e do sigilo da Rússia, Pettinà acredita que o histórico científico e tecnológico deste país não deve ser subestimado.

"O sigilo está intimamente ligado à herança de segurança soviética, mas não devemos esquecer que a Rússia foi uma potência durante a Guerra Fria e que continua a investir pesadamente em ciência e tecnologia."

O fato de a vacina russa funcionar e ser tão eficaz é, sem dúvida, uma grande notícia para o mundo, mas, como outras vacinas, não escapa às muitas perguntas que ainda rondam os imunizantes.

Quanto tempo durará a proteção? Também será eficaz contra as novas variantes mais contagiosas emergentes no mundo?

Mesmo com o reforço da Sputnik V e de outras vacinas, tudo parece indicar que ainda é uma incógnita o tempo que resta na luta contra a pandemia.

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Fonte: G1

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