A 'epidemia' de desaparecimentos de indígenas que intriga os EUA

Por Rogerio Magno em 01/01/2022 às 20:39:48
Milhares de indígenas do país, especialmente mulheres e meninas, estão desaparecidos ou foram assassinados, em casos muitas vezes ignorados pelas autoridades. Há mais de duas décadas Carolyn DeFord (à direita) busca pistas sobre o paradeiro de sua mãe, Leona Kinsey (à esquerda)

Arquivo pessoal (via BBC)

A americana Carolyn DeFord passou os últimos 22 anos procurando por sua mãe, Leona Kinsey. Descendente da tribo indígena Puyallup, Kinsey foi vista pela última vez em 25 de outubro de 1999, em sua casa em La Grande, cidade de pouco mais de 13 mil habitantes no estado de Oregon.

"Nós não sabemos o que aconteceu", diz DeFord à BBC News Brasil.

"Ela disse a uma amiga que estava indo ao supermercado encontrar um homem chamado John e que depois passaria na casa dessa amiga."

Três dias depois, o carro de Kinsey foi localizado no estacionamento do supermercado. Mas ela nunca mais foi vista.

"A polícia registrou o desaparecimento, mas inicialmente disseram que ela era maior de idade e tinha o direito de sumir se quisesse e que não havia nada que pudessem fazer", lembra DeFord.

Leona Kinsey é descendente da tribo indígena Puyallup e desapareceu em 1999 na cidade de La Grande, no estado de Oregon

Arquivo pessoal (via BBC)

Descrita pela filha como "forte e independente", Kinsey tinha 45 anos de idade quando desapareceu. DeFord questiona se o caso recebeu a atenção devida, lembrando que Kinsey trabalhava fazendo bicos e havia enfrentado problemas legais no passado.

"Minha mãe não tinha uma posição de status na comunidade para que se importassem com o que aconteceu com ela", afirma.

Com o passar do tempo e a falta de avanços no caso, DeFord, que na época do desaparecimento tinha 25 anos de idade, três filhos pequenos e morava no estado vizinho de Washington, passou a realizar sua própria campanha para tentar encontrar a mãe.

Aos poucos, ela começou a entrar em contato com outras pessoas na mesma situação, e acabou fundando uma associação de apoio às famílias de indígenas desaparecidos ou assassinados.

Carolyn DeFord fundou associação de apoio a famílias de indígenas desaparecidos e assassinados

Arquivo pessoal (via BBC)

DeFord continua buscando saber o que aconteceu com sua mãe. Mas, mais de duas décadas depois, o desaparecimento de Kinsey continua sem solução.

O drama enfrentado por sua família é parte do que ativistas, políticos e o próprio presidente americano descrevem como uma "epidemia": milhares de indígenas do país, especialmente mulheres e meninas, estão desaparecidos ou foram assassinados, em casos muitas vezes ignorados pelas autoridades.

Muitas mulheres indígenas são vítimas de violência sexual ou tráfico de pessoas. Grande parte dos desaparecidos nunca são encontrados.

O problema voltou a ganhar atenção no mês passado, quando o presidente Joe Biden assinou uma ordem executiva estabelecendo prazo de 240 dias para que os Departamentos de Justiça, do Interior e de Segurança Interna apresentem uma estratégia para enfrentar a "crise de violência" contra indígenas.

"Ações executivas anteriores não alcançaram mudanças suficientes para reverter a epidemia de pessoas indígenas desaparecidas ou mortas e de violência contra indígenas americanos", disse Biden.

Falta de dados

Em abril, a secretária do Interior, Deb Haaland, primeira indígena a ocupar o cargo, já havia anunciado a criação de uma unidade especial para investigar casos de indígenas desaparecidos e assassinados.

Nos últimos anos, vários estados também criaram suas próprias forças-tarefas para combater o problema.

Mas, apesar de essa ser uma crise que persiste há décadas, até hoje não se sabe ao certo nem mesmo o número de pessoas afetadas.

Não existe um banco de dados único que reúna essas informações, e há discrepâncias nos dados das diferentes agências e organizações que monitoram o problema.

Segundo o Centro Nacional de Informações Criminais (NCIC, na sigla em inglês), ligado ao FBI (a polícia federal americana), há atualmente cerca de 1,5 mil indígenas desaparecidos no país.

O NCIC recebeu 5.295 registros de mulheres e meninas indígenas desaparecidas em 2020, dos quais 578 continuavam ativos no fim do ano.

Outros 4.276 casos envolviam homens e meninos indígenas, sendo que 918 permaneciam ativos em dezembro passado.

Ativistas dizem que o número real é bem maior.

Segundo relatório publicado em 2018 pelo Instituto de Saúde Indígena Urbana, parte da Comissão de Saúde Indígena de Seattle, das 5.712 mulheres e meninas indígenas desaparecidas registradas no NCIC em 2016, somente 116 estavam incluídas no banco de dados sobre desaparecidos do Departamento de Justiça.

As autoras do estudo buscaram informações com departamentos de polícia de 71 cidades em 29 estados. Em 59% dos casos, os dados não foram fornecidos ou foram entregues incompletos.

Após pesquisarem relatos na imprensa e entrevistarem membros de comunidades indígenas, as autoras encontraram mais de 150 mulheres desaparecidas ou assassinadas que a polícia não havia identificado.

"Constatamos que, quando mulheres e meninas indígenas desaparecem ou são mortas, as autoridades não investigam de forma apropriada e não ajudam (as famílias) e encontrá-las ou a solucionar os crimes", diz à BBC News Brasil a diretora do instituto, Abigail Echo-Hawk, que é coautora do relatório.

Abigail Echo-Hawk é coautora de relatório sobre mulheres e meninas indígenas desaparecidas nos EUA

Divulgação/Mel Ponder (via BBC)

"Os bancos de dados não mostravam que havia um problema de mulheres indígenas desaparecidas e assassinadas. E então eles não estavam investigando nem colocando recursos para nos ajudar a acabar com a violência", afirma Echo-Hawk, que pertence à Nação Pawnee de Oklahoma.

Segundo ela, o relatório serviu para chamar a atenção para o problema, mas pouco mudou desde sua publicação em relação à coleta de dados oficiais. Diante disso, organizações comunitárias começaram a montar seus próprios banco de dados.

Em um relatório de 2020, o Sovereign Bodies Institute (Instituto Corpos Soberanos), organização sem fins lucrativos que compila dados sobre violência contra indígenas, documentou 2.306 casos de mulheres e meninas desaparecidas ou assassinadas no país.

Ao examinar detalhadamente 105 casos ocorridos na Costa Oeste, o estudo concluiu que 62% das vítimas nunca foram incluídas em nenhum banco de dados oficial sobre desaparecidos.

Violência desproporcional

A falta de dados confiáveis é resultado de uma combinação de fatores. Alguns sistemas têm informações incompletas ou incorretas, e muitos não incluem categoria racial das vítimas.

Também é comum que indígenas sejam identificados erroneamente como brancos, asiáticos ou hispânicos. Muitas vezes não há referência à tribo à qual a vítima pertence, o que faz com que a comunidade nem saiba que houve crime contra um de seus membros, e assim não possa exigir investigação.

Um histórico de séculos de violência contra indígenas também faz com que muitos não confiem na polícia ou nas autoridades federais e acabem não denunciando ou compartilhando informações sobre crimes.

Mas, mesmo sem dados precisos, há evidências de que indígenas americanos sofrem taxas desproporcionais de violência.

De acordo com dados do Censo americano, há 574 tribos indígenas reconhecidas pelo governo federal. A população indígena no país é de cerca de 7 milhões, número que inclui pessoas que declaram pertencer a mais de uma categoria racial.

Um relatório publicado em 2016 pelo Instituto Nacional de Justiça, ligado ao Departamento de Justiça, estima que 1,5 milhão de mulheres indígenas no país sofreram violência ao longo da vida, incluindo abuso sexual e agressão física.

Segundo o documento, nos Estados Unidos mulheres indígenas têm até três vezes mais chance de serem vítimas de violência em comparação com mulheres de outras raças. O Departamento de Justiça estima que somente 13% dos casos de agressão sexual contra indígenas resultem em prisão do agressor.

Dados do Departamento de Saúde indicam que homicídio é a terceira principal causa de morte de mulheres e meninas indígenas com idades de 12 a 30 anos.

Outro estudo, financiado pelo Departamento de Justiça, calcula que, em algumas reservas indígenas, a taxa de homicídios de mulheres chega a ser mais de 10 vezes maior do que a média nacional.

Mas a violência não está restrita às áreas pertencentes a reservas, já que mais de 70% dos indígenas nos Estados Unidos vivem em áreas urbanas.

E, mesmo quando o crime ocorre nas reservas, é comum que o agressor seja de fora. A maioria das entrevistadas no relatório do Instituto Nacional de Justiça disse que seu agressor não era indígena.

Emaranhado de jurisdições

O combate à crise é complicado pelo fato de que a polícia das reservas não pode prender ou processar agressores que não sejam membros de uma tribo, mesmo que tenham cometido crimes em seu território ou que as vítimas sejam indígenas.

Quando o criminoso não é indígena, cabe às autoridades federais decidir se o caso será investigado e levado à Justiça.

Isso é fruto de uma decisão da Suprema Corte (a mais alta instância da Justiça americana) em 1978, no caso Oliphant versus Suquamish, que determinou que tribos indígenas não têm jurisdição sobre crimes cometidos por pessoas não indígenas.

Ativistas dizem que essa decisão agravou a crise de indígenas desaparecidos ou assassinados, principalmente mulheres vítimas de violência sexual.

No caso de indígenas vítimas de crimes fora de reservas, a investigação costuma ficar a cargo de autoridades estaduais.

Em crimes cometidos por membros de tribos dentro das reservas, a jurisdição depende do estado: em alguns, a polícia indígena divide a responsabilidade com autoridades estaduais, e em outros, com federais.

Em muitos crimes, há discordância sobre quem deve ser responsável pela investigação: a polícia local, estadual, o FBI ou a polícia indígena.

Essa burocracia e falta de coordenação fazem com que muitos casos não sejam investigados ou processados.

Segundo dados do Departamento de Justiça de 2019, em mais de um terço dos crimes cometidos por agressores de outras raças em terras indígenas, promotores federais decidiram não seguir adiante com um processo.

"Eles criaram uma série de leis e políticas que efetivamente permitem que pessoas nos matem, nos sequestrem, sem medo de serem punidas se forem pegas", afirma Echo-Hawk.

"Esse emaranhado de jurisdições permite que agressores se aproveitem dessa brecha e andem de reserva em reserva perpetuando violência."

Nos últimos anos, algumas tribos conquistaram o direito de deter suspeitos em seus territórios se estes estiverem quebrando leis estaduais ou federais.

Um programa do Departamento de Justiça envolvendo duas dezenas de tribos garante a autoridades nessas reservas o direito de processar casos de violência doméstica contra suspeitos não indígenas. Uma proposta em tramitação no Congresso ampliaria esse direito a outras tribos.

Mas o efeito dessas iniciativas ainda é limitado. E mesmo quando a polícia indígena fica responsável pela investigação, a falta de recursos e de pessoal para cobrir grandes extensões de terra muitas vezes dificulta a resolução dos casos.

Em meio a todos esses empecilhos, famílias como a de Carolyn DeFord acabam assumindo a investigação sobre seus desaparecidos.

Muitas organizam mutirões com a ajuda de conhecidos para colar cartazes em locais públicos e fazer buscas em áreas remotas. Também tentam chamar a atenção para seus casos nas redes sociais.

Mas, assim como DeFord, é comum que fiquem anos sem ter respostas, em casos que nunca são solucionados.

Tratamento diferente

DeFord diz que o caso de sua mãe retrata problemas comuns enfrentados por indígenas vítimas de violência e suas famílias.

"Eles não levaram seu desaparecimento a sério", acredita. "Fizeram o registro, mas esperaram que ela voltasse para casa. Esperaram semanas antes de começar a procurar."

Echo-Hawk diz ter ouvido vários relatos em que as autoridades parecem não acreditar que a pessoa desaparecida corre perigo.

"Trabalhei em vários casos em que alguém desapareceu e depois foi encontrado morto. E quando as famílias foram registrar o desaparecimento, ouviram da polícia perguntas como 'Ela estava bebendo?' ou 'Ela era trabalhadora sexual?'", relata.

"Fazendo suposições baseadas em preconceitos e estereótipos sobre pessoas indígenas. Suposições que não fariam se fosse uma mulher branca desaparecida", observa Echo-Hawk.

Ativistas criticam o fato de que o desaparecimento de indígenas não costuma ganhar a mesma atenção das autoridades, do público e da imprensa do que casos em que a vítima é branca.

A disparidade ficou evidente recentemente no desaparecimento de Gabby Petito, uma jovem de 22 anos cujo corpo foi encontrado em um floresta no estado de Wyoming após semanas de buscas frenéticas que geraram comoção nacional.

"Quando essa jovem branca e loira desapareceu, o estado inteiro se mobilizou para encontrá-la", diz Echo-Hawk, lembrando que há mais de 700 indígenas desaparecidos em Wyoming.

"Todos merecem o tipo de resposta que a família de Gabby Petito recebeu."

Fonte: G1

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