Eleições na Bolívia: como será o primeiro pleito após renúncia de Evo Morales?

Por Rogerio Magno em 18/10/2020 às 09:53:06
Sob acusações de fraudes, o ex-presidente deixou o cargo, mas análises posteriores concluíram que auditoria da OEA que colocou a votação em questão estava incorreta. Agora, o partido de Morales chega às novas eleições como favorito. A Bolívia teve muitos protestos populares no último ano

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Era quase meia-noite de 20 de outubro de 2019, data em que foram realizadas as últimas eleições nacionais da Bolívia, e o país ainda não sabia se Evo Morales permaneceria na Presidência.

Um ano depois do cancelamento daquela polêmica eleição, os bolivianos voltam às urnas neste domingo para decidir quem será o primeiro presidente eleito após os quase 14 anos de governo de Morales e após o mandato interino de Jeanine Áñez.

Morales renunciou em 10 de novembro em meio a uma mobilização social que, somada ao motim de grande parte dos policiais bolivianos e ao pedido de renúncia feito pelas Forças Armadas, acabou por destituí-lo do poder.

Depois um ano marcado pela pandemia do coronavírus, as eleições deste domingo chegam com o partido fundado por Morales, o Movimento pelo Socialismo (MAS), como favorito nas pesquisas, com o candidato Luis Arce Catacora.

Catacora foi Ministro da Economia e Finanças de Morales por quase todo seu mandato (exceto por dois anos devido ao câncer) e lidera as intenções de voto, mas em uma situação bem diferente da época em que a vitória do MAS era garantida com mais de 60% dos votos.

Luis Arce Catacora, ex-ministro de Evo, agora é o favorito nas pesquisas

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As pesquisas de opinião na Bolívia colocam em segundo lugar Carlos Mesa, ex-presidente e jornalista que, desde 2019, se tornou o maior adversário do MAS. E em terceiro lugar vem Luis Fernando Camacho, conhecido como o "Bolsonaro boliviano" e um dos líderes da revolta que contribuiu para a queda de Morales.

O que aconteceu nas últimas eleições?

Morales renunciou à presidência 21 dias após as eleições do ano passado, em meio a uma onda de protestos de rua acusando-o de fraudes eleitorais.

Uma auditoria realizada pela Organização dos Estados Americanos (OEA) apontou que havia ocorrido irregularidades nas votações e que os resultados não eram confiáveis.

No entanto, a OEA não constatou ocorrência de fraudes, e diversos estudos acadêmicos em 2020 analisaram o método utilizado pela entidade e chegaram à conclusão que as análises da organização estavam incorretas.

No entanto, a auditoria da OEA continua sendo um dos principais argumentos dos detratores de Morales que o acusam de trapacear nas eleições de 2019.

Uma missão de observadores da União Europeia chegou a propor a realização de um segundo turno. Ambos os eventos multiplicaram a suscetibilidade e a crise política da época.

Em 10 de novembro, horas depois dos resultados preliminares dessa auditoria da OEA, Morales renunciou à Presidência, denunciando ter sido vítima de um golpe.

Dois dias depois, Jeanine Áñez assumiu, e sua posse foi endossada pelo Tribunal Constitucional da Bolívia. Menos de 48 horas após a saudação do Palácio do Governo, ela disse à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC, que seu principal objetivo era convocar novas eleições e que não concorreria nelas.

Porém, em janeiro deste ano, ela tomou uma decisão contrária e decidiu ser candidata, em uma época em que as pesquisas lhe davam altos índices de aprovação.

Jeanine Áñez assumiu a Presidência em novembro

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Áñez acabou renunciando à candidatura no final de setembro, diante do seu fraco desempenho nas pesquisas. Ela disse ter feito isso para que "Evo não voltasse".

Decisão semelhante foi tomada por dois outros partidos políticos que retiraram suas candidaturas menos de duas semanas antes das eleições.

Durante o governo de transição, foram tomadas decisões que iam além do restabelecimento de um mandato constitucional. Por exemplo, grande parte do serviço diplomático foi alterado, e as relações com países como Cuba e Venezuela foram rompidas.

E as mudanças dos titulares de cargos governamentais foram constantes e não foram livres de escândalos de corrupção.

Sindicatos e organizações camponesas pedem por eleições desde a saída de Evo

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Foi golpe ou não foi golpe?

Desde a renúncia de Morales, a controvérsia sobre se sua saída foi um golpe ou não está no centro da polarização política no país.

"Golpe" é uma das palavras que o ex-presidente repete com insistência, e seus seguidores o apoiam. Morales agora está na Argentina, depois de ter ido inicialmente para o México e passado por Cuba.

Morales foi encurralado a tal ponto que o anúncio de sua renúncia foi feito no Chapare (centro da Bolívia), onde sempre foi invencível nas urnas.

Com milhares de seus seguidores em estado de alerta, ele afirmou que a Polícia e os militares o abandonaram e garantiu que o golpe contra ele tinha sido bem sucedido.

Poucos dias antes houve um grande motim policial, e nas horas antes de sua queda as Forças Armadas "sugeriram" que ele se afastasse.

A maior central sindical do país também pediu sua renúncia, e os protestos contra ele se mantiveram intensos por três semanas, deixando cidades como La Paz e Santa Cruz paralisadas.

O papel das Forças Armadas na saída de Morales é questionado

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Sebastián Michel, ex-vice-ministro de Morales e agora porta-voz da campanha de Catacora, enumera diferentes razões que ele diz terem resultado no sucesso do que ele chama de golpe contra o ex-presidente.

"Foi uma conspiração política em que subornos foram feitos a comandantes das Forças Armadas e da Polícia Nacional. Não é um golpe de todos os militares, mas de alguns comandantes", disse ele à BBC News Mundo.

Michel acredita que o ocorrido causou uma perda significativa da legitimidade dos militares perante a sociedade boliviana e que por isso "são repudiados na rua".

"Um elemento central é que as Forças Armadas não podem pedir a renúncia de um governo. É o mesmo que se você estivesse na rua e um ladrão com uma arma se aproximasse de você e pedisse sua carteira. Quando você a entrega, não é uma transferência voluntária, ele está roubando você", acrescenta.

O porta-voz inclui entre seus argumentos a polêmica sucessão presidencial que levou Áñez ao poder e as mortes ocorridas nos dias após a renúncia de Morales, que ainda não foram esclarecidas.

Apoiadores de Evo lamentaram sua renúncia em 2019

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'Recuperação da democracia'

Muito diferente da leitura do porta-voz do partido de Evo Morales é a opinião de Javier Issa, atual vice-ministro do Regime do Interior da Bolívia.

"A sucessão foi constitucional. Em nenhum momento houve golpe. Há renúncias expressas do ex-presidente, do ex-vice-presidente e do ex-presidente do Senado", diz à BBC News Mundo.

Issa acrescenta que o que aconteceu há um ano foi um ato de "recuperação da democracia", já que, diz ele, o MAS havia "criado um esquema para governar por muito mais tempo".

"Não havia independência de poderes quando o senhor Morales era presidente. Todos os poderes e instituições estavam a serviço do caudilho", afirma.

Issa afirma que durante os 14 anos de governo de Evo, foram "montados" processos contra todos os adversários políticos. "Eles judicializaram a política", conclui.

Morales foi da Bolívia para o México após renunciar

Reuters

Violência

Mais de 20 pessoas morreram nos conflitos sociais que eclodiram após a renúncia de Morales, e o governo Áñez é questionado por isso.

Também ocorreram pelo menos duas mortes antes da renúncia do ex-presidente, mas os organismos internacionais observam uma diferença: as forças de segurança do Estado participaram dos eventos subsequentes.

"Há fortes indícios de uso excessivo e desproporcional da força dos militares e da polícia. Por isso, nosso apelo é esclarecer esses fatos", disse María José Veramendi, pesquisadora da Anistia Internacional para a América do Sul.

A especialista coordenou uma equipe que fez trabalho de campo junto aos familiares das vítimas, autoridades judiciárias e governamentais. Ela aponta que um decreto presidencial que na época isentava as Forças Armadas de responsabilidade criminal é "uma violação de direito internacional".

"Infelizmente, no período em que vigorou, ocorreram as mortes", acrescenta.

Veramendi lembra, no entanto, que também durante o mandato de Morales e seus antecessores também ocorreram violações de direitos humanos.

"Todos devem ser investigados e punidos. Em nosso relatório, afirmamos expressamente que certas ações ocorreram antes das eleições de 20 de outubro de 2019. Por isso, a crise de impunidade no país deve ser enfrentada", afirma.

E o coronavírus?

Menos de cinco meses depois do terremoto político que atingiu a Bolívia, o coronavírus chegou ao país e mudou tudo.

As eleições para escolher o sucessor de Morales aconteceriam no início de maio, depois foram adiadas para agosto e, finalmente, serão realizadas em 18 de outubro de 2020.

A quarentena e as restrições para evitar contágios significaram um golpe terrível para a economia do país e para a situação financeira dos bolivianos.

A principal reivindicação dos apoiadores de Morales era a realização das eleições o mais rápido possível para "redirecionar o país". Mas, com a covid-19, a batalha política se concentrou nas responsabilidades pela emergência sanitária.

A atual governo diz que Morales deixou uma herança de pouco investimento em saúde, enquanto apoiadores do ex-presidente dizem que governo Áñez está sendo incompetente no enfrentamento da crise de saúde e da crise econômica.

E agora?

Morales não deixou de ser uma referência na política boliviana e sua influência está longe de desaparecer.

Em uma de suas falas públicas mais recente, ele afirmou que, se seu partido vencer as eleições, "no dia seguinte" ele estará de volta à Bolívia.

Porém, vários dirigentes sindicais e agricultores que acreditam que é hora de virar a página e construir novas lideranças.

Mesmo o candidato de seu partido repete que será ele quem governará a Bolívia em caso de vitória, e não o ex-presidente.

Fonte: G1

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