Análise: França - cai por terra o tabu da pedofilia na Igreja Católica

Por Rogerio Magno em 09/11/2021 às 21:32:41
Igreja francesa faz um profundo 'mea culpa' e abre caminho para outros países punirem exemplarmente a pedofilia, indenizando as vítimas. Manifestantes seguram faixa com os dizeres "Vítimas de violência sexual na Igreja Católica exigem: reconhecimento, responsabilidade, reparação, reforma" no pátio da basílica de Notre-Dame-du-Rosaire , em Lourdes, sudoeste da França, em 6 de novembro de 2021.

AFP/Valentine Chapuis

A Igreja Católica na França acaba de romper exemplarmente a fronteira da dissimulação, do silêncio e do esquecimento ao anunciar publicamente o reconhecimento da “dimensão sistêmica” de crimes de abuso sexual contra menores por padres e religiosos, num histórico que remonta ao menos até os anos 1950.

Numa decisão inédita, sua Conferência de Bispos, durante décadas reticente, chama para si a “responsabilidade institucional” de combate a essas práticas, e introduz a palavra “indenização” na penitência a ser paga às 216 mil vítimas identificadas neste período. O presidente da Conferência, Eric Moulin Beaufort, usou palavras contundentes ao anunciar o resultado do encontro: “Compreendemos que precisávamos ir até o fundo para consertar um sistema eclesiástico pervertido, que permitiu que fatos dessa gravidade não fossem nem vistos nem ouvidos. Estamos prontos para assumir todas as consequências”.

A consequência mais imediata será a criação de uma instância nacional independente, presidida por uma mulher, a jurista Marie Derain de Vaucresson, de extensa biografia na defesa das crianças e dos adolescentes, que vai supervisionar nove grupos de trabalho de intermediação entre as vítimas e os arquivos das dioceses, estejam os crimes prescritos ou não. No dia 1 de abril de 2022 entra em vigor um tribunal nacional penal canônico, a ser votado em março, assim como um sistema de verificação sistemática de todos os agentes pastorais do país de acordo com os protocolos das cortes locais.

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Para reunir fundos potencialmente consideráveis para a indenização das vítimas, a Igreja Católica irá colocar à venda parte de sua poderosa riqueza em bens mobiliários e imobiliários. Encarregados dos assuntos financeiros do episcopado estimam valores em torno de 500 milhões de euros.

A reação dos bispos acontece exatamente um mês depois do impacto causado pela divulgação do relatório da Comissão Independente sobre os abusos sexuais da Igreja Católica, depois de dois anos de um longo e penoso trabalho de investigação sob a supervisão de uma personalidade laica e acima de qualquer suspeita: Jean Marc Sauvé, 72 anos, presidente de honra do Conselho de Estado, considerado um especialista em reflexões para a prevenção de conflitos de interesse da vida pública, que explica em grande parte o modo de ser da sociedade francesa. A equipe de Sauvé contatou diretamente cerca de 3.500 vítimas de pedofilia, das quais 250 foram ouvidos em longas entrevistas que ajudaram a nortear as pesquisas.

Depoimentos dolorosos, difíceis, porque exigem o esforço de reviver a dor do segredo guardado, da culpa, do pecado, da barreira intransponível da hierarquia. Como revela Christian Dubreuil, um dos raros entrevistados que admitiu levantar o anonimato e falar ao jornal Libération: “as vítimas de crimes de pedofilia estão na sombra, dentro de uma cripta, uma gruta. A criança é condicionada pelos seus próximos e pela sociedade a não falar. São mudos, falando com surdos”.

Francisco, um papa de opção aberta pelos oprimidos e injustiçados, prometeu “tolerância zero”para com a pedofilia na Igreja. Vai receber a comissão de Sauvé no dia 5 de dezembro. Mas resta um longo caminho a percorrer até que a Igreja Católica supere seu anacronismo histórico e enterre a sacralização dos padres e o celibato, condições que parecem fundamentais para a sua sobrevivência no século XXI.

Elizabeth Carvalho é correspondente da GloboNews e da TV Globo em Paris.

Fonte: G1

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