O Brasil conta com 100,1 milhões de leitores, em um universo de mais de 200 milhões de habitantes, e esse grupo vem diminuindo com o passar do tempo. De acordo com a Ășltima edição da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, feita com dados de 2019, registrou-se uma diferença de 4,6 milhões de pessoas em relação a 2015.
Os resultados da pesquisa, elaborada pelo Instituto Pró Livro e o ItaĂș Cultural, lembram alguns dos entraves para se manter o hĂĄbito de leitura no paĂs, que voltam à tona em datas como a comemorada hoje (7), Dia do Leitor. A celebração é uma homenagem à fundação do jornal cearense O Povo, que foi criado em 7 de janeiro de 1928, pelo poeta e jornalista Demócrito Rocha.
Além do valor dos livros, que os tornam artigo de luxo para os mais pobres, e da correria do dia a dia, que acaba dificultando o hĂĄbito da leitura, ainda faltam recursos de acessibilidade. Tal lacuna também é percebida em um dos formatos mais queridos dos brasileiros: os gibis ou as histórias em quadrinhos. Juntos, eles representam uma parcela significativa de material de leitura com que o brasileiro tem contato todos os dias ou pelo menos uma vez por semana, conforme revela a pesquisa Retratos da leitura no Brasil.
A pesquisa mais recente do Instituto Pró-Livro e ItaĂș Cultural também mostrou que 2% dos entrevistados classificados como não leitores de livros informaram que a razão pela qual não leram nos Ășltimos trĂȘs meses foi porque tĂȘm problemas de saĂșde/visão. Entre os entrevistados qualificados como leitores, a pergunta não foi aplicada.
Os obstĂĄculos de se traduzir histórias em quadrinhos para pessoas com deficiĂȘncia visual foi o enfoque dado pelo pesquisador Victor Caparica à sua tese de doutorado, desenvolvida na Universidade Estadual Paulista JĂșlio de Mesquita Filho (Unesp). O trabalho venceu o PrĂȘmio Unesp de Teses na categoria Sociedades Plurais.
Caparica perdeu, primeiro, a visão de um olho apenas, tornando-se o que se chama de monocular, até que, uma década depois, acabou ficando sem enxergar de modo absoluto. Ele integra a parcela de 3,6% da população brasileira que tem deficiĂȘncia visual. Conforme menciona o Instituto Brasileiro de Geografia e EstatĂstica (IBGE), na Pesquisa Nacional de SaĂșde, 16% das pessoas com esse tipo de deficiĂȘncia apresentam um grau muito severo, que os impede de realizar atividades habituais, como ir à escola, trabalhar e brincar.
Segundo Caparica, a audiodescrição não é algo semelhante à tradução, mas consiste, "categoricamente", em traduzir. Isso significa que implica o mesmo grau de percalços e questionamentos de outros tipos de tradução, como a literĂĄria. O processo que se configura é "a transposição de um enunciado de uma perspectiva visual (que uma pessoa com deficiĂȘncia visual não pode avaliar) para uma perspectiva não-visual".
"Não hĂĄ nenhuma diferença qualitativa ou quantitativa observĂĄvel entre a tradução de uma pessoa que traduz um poema de um idioma para outro e uma audiodescrição, são os mesmos desafios, a mesma atividade, são as mesmas competĂȘncias que se espera do profissional", diz.
"Inclusive, na ĂĄrea de letras, é relativamente conhecido o termo da tradução intersemiótica e eu uso bastante essa expressão na pesquisa, que é justamente quando vocĂȘ estĂĄ traduzindo um enunciado de uma forma de construção de sentido, que a gente chama de semiose, de uma semiose pra outra. Então, é de uma forma de construir significados pra outra forma de construir significado."
Em seu trabalho acadĂȘmico, Caparica pontua que aproveitar a simples sucessão de quadros não seria o suficiente para uma narração, reflexão que fez a partir de sua dupla experiĂȘncia, como leitor de histórias em quadrinhos visual e como consumidor do produto audiodescrito. E foi nesse sentido que desejou contribuir.
O pesquisador argumenta, ainda, que "a audiodescrição exige a cooperação entre um audiodescritor que enxerga e um consultor que não enxerga". Por isso, para desenvolver sua tese, a companheira de Caparica, LetĂcia Mazzoncini Ferreira, formou-se como audiodescritora para colaborar com o projeto.
"Quem consome a audiodescrição não pode produzi-la, quem precisa, seu pĂșblico-alvo. E quem a produz não é seu pĂșblico-alvo. Isso cria uma lacuna, um abismo comunicacional que precisa ser suplantado. É necessĂĄrio que se construa uma ponte por cima desse precipĂcio que separa o pĂșblico da produção", diz.
"Eu ainda consigo cumprir, como profissional, uma série de papéis da audiodescrição, por uma coincidĂȘncia de elementos da minha formação pessoal e profissional, acabei acumulando algumas competĂȘncias mĂșltiplas na ĂĄrea de audiodescrição. Além de ser consultor e produtor de conteĂșdo audiodescrito, sou também locutor profissional e também faço a parte de edição e mixagem de ĂĄudio. Então, trĂȘs quartos do trabalho com a produção de audiodescrição eu, como pĂșblico-alvo, consigo estar lĂĄ e fazer, mas esse um quarto que falta é o papel mais importante de todos, que é o de audiodescritor, que faz efetivamente a tradução", emenda.
Caparica destaca, em sua tese, trĂȘs localidades que considera avançadas, em termos de audiodescrição: os Estados Unidos, o Reino Unido e a Espanha. No território estadunidense, por exemplo, o rĂĄdio foi fundamental para a difusão desse tipo de técnica, que começou pelo teatro, com peças sendo transmitidas por diversas estações.
"Costumo dizer que a audiodescrição começou com o rĂĄdio. AĂ, vocĂȘ vai dizer: radionovela. A radionovela não é o caso, porque jĂĄ foi concebida para ser ĂĄudio, mas as locuções esportivas no rĂĄdio, não. O primeiro caso de audiodescrição profissional que vocĂȘ vai encontrar são os locutores futebolĂsticos, que faziam audiodescrição em tempo real do que estava acontecendo no estĂĄdio. Sem dĂșvida, o rĂĄdio teve, em muitos lugares, uma relação muito próxima com a audiodescrição e é ainda subutilizado nesse sentido. Se considerar a estrutura de pessoas que tem um radinho FM em casa e, mesmo quem não tem, quanto custa um hoje? Tem uma facilidade de estrutura e de se transmitir esse conteĂșdo de forma acessĂvel e com tanta facilidade por essa mĂdia, acho que é muito subutilizada pelo que poderia ser, hoje, no século 21", pontua Caparica.
Enquanto nos Estados Unidos hĂĄ uma lei federal que fortalece a consolidação do recurso, no Brasil, avalia ele, "a prĂĄtica é incipiente".
O que falta, afirma, é a robustez e a estabilidade de polĂticas pĂșblicas. Caparica afirma que a audiodescrição no paĂs ainda precisa ser aprimorada, embora não esteja "estagnada" e que a capacitação profissional deve, necessariamente, contemplar demandas especĂficas do idioma.
"Não existe, nunca existiu no Brasil uma polĂtica nacional para pessoa com deficiĂȘncia. PolĂtica nacional não é projeto de governo, porque isso, esse partido faz e o próximo desfaz. PolĂtica nacional é como se teve, por exemplo, a de alfabetização no Brasil. Foi um projeto que foi abraçado e nenhum governo que veio depois achou que fazia sentido desfazer. "
Por isso, toda iniciativa é sempre individual, pontual, é sempre quem consegue fazer alguma coisa e, dentro dessas possibilidades, dessa limitação, o que o Brasil conseguiu fazer foi produzir audiodescrição no começo desse século só, colocando a gente com certo atraso na coisa. A gente demorou muito para regulamentar a profissão de audiodescritor. Um curso de audiodescritor ainda não tem nenhuma regulamentação, então é feito de maneira muito informal. Os melhores, inevitavelmente, vão replicar o modelo de cursos do exterior jĂĄ consagrados", finaliza.
Para obter os dados apresentados no levantamento do Instituto Pró Livro e do ItaĂș Cultural, equipes percorreram 208 municĂpios, entre outubro de 2019 a janeiro de 2020. Ao todo, 8.076 pessoas foram consultadas, sendo divididas entre leitores, que são aqueles que leram um livro integral ou parcialmente nos Ășltimos trĂȘs meses, e não leitores, classificação que designa aqueles que declararam não ter lido nenhum livro nos Ășltimos 3 meses, mesmo que tenha lido nos Ășltimos 12 meses.
A simpatia pela Turma da Mônica fica evidente nas respostas. Os gibis foram uma das 37 obras mais citadas. Além disso, MaurĂcio de Sousa, criador dos personagens do gibi, também figura entre os autores mais lembrados e adorados.
Também se observa que, entre estudantes, a proporção de gibis e histórias em quadrinhos é maior (16%) do que a registrada entre não estudantes (8%). A média nacional é de 8%.
Pode-se imaginar também que, ao estar na universidade, os jovens acabem abandonando os gibis e quadrinhos, mas acontece exatamente o oposto. Ao todo, 14% dos entrevistados com esse nĂvel de escolaridade declararam que os leem, contra 13% das crianças que cursam o fundamental I (1Âș a 4Âș série ou 1Âș ao 5Âș ano), 12% dos que estão no ensino fundamental II (5Âș a 8Âș série ou 6Âș ao 9Âș ano) e 8% dos alunos do ensino médio.
Em relação à faixa etĂĄria, observa-se que os grupos que mais folheiam gibis e histórias em quadrinhos são pessoas com 5 a 10 anos de idade (22%) e de 11 a 13 anos (21%). As que manifestam menos interesse são idosos com 60 anos ou mais (1%), com 50 a 59 (7%) e 30 a 39 (8%).
Fonte: AgĂȘncia Brasil