Artigo | Vivo quer transformar educação nacional; poderia começar pagando o que deve

Por Rogerio Magno em 04/06/2021 às 19:28:01

Numa sala com vidros espelhados e vista panorâmica na cobertura do arranha-céu de número 1.376 na Avenida Berrini, Christian Gebara recebe convidados para almoços no meio do expediente como presidente da Vivo no Brasil.

Enquanto um garçom serve bebidas e anota os pedidos - massas, carnes nobres, peixes exóticos e opções veganas -, os convivas se acomodam à mesa larga, respeitando a distância mínima indicada pelos protocolos sanitários, e retiram, finalmente, suas máscaras.

É quando Gebara e seu currículo padrão para altos executivos - egresso de universidade estrangeira, no caso dele, Stanford, com passagens por bancos e consultorias empresariais nos Estados Unidos e Europa, galgando cargos de chefia até assumir a presidência da Vivo em 2019, tudo isso antes dos 50 anos -, expõe seus planos sem a interferência das telas que sequestraram as interações sociais desde o início da pandemia de covid-19.

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A líder do mercado de telefonia móvel no país que, mesmo diante da maior crise sanitária da história, obteve lucro líquido de R$ 4,7 bilhões e uma receita operacional de R$ 43,1 bilhões em 2020, não pensa só na sua própria saúde financeira: quer investir na educação como pilar de uma transformação social capaz de construir um Brasil justo, com cidadãos protagonistas e digitais. Essa é a missão da Fundação Telefônica Vivo, que movimentou R$ 75 milhões somente no ano passado.

Com atuação em 21 estados e 61 municípios, a Fundação, criada em 1999, desenvolve projetos de inclusão digital de professores e estudantes. Em 2020, foram mais de dois milhões de pessoas beneficiadas, segundo informe social da entidade. Além disso, doou R$ 36,6 milhões em respiradores, insumos hospitalares e alimentos para iniciativas de combate à pandemia.

Parece muito, mas não é. Todos os almoços e ações filantrópicas liderados pela Vivo de Gebara poderiam ser substituídos por uma única ação: pagar o que lhe cabe das bilionárias multas impostas pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) às empresas de telefonia e internet nas últimas décadas.

Relatório de avaliação sobre o processo sancionatório da Anatel divulgado em agosto de 2020 pela Controladoria Geral da União (CGU) identificou mais de 66 mil multas aplicadas entre 1997 e 2019, num montante aproximado de R$ 11,5 bilhões. No entanto, apenas 7,5% desse valor foi efetivamente pago.

No caso da Vivo, estamos falando de um universo total de R$ 1,35 bilhão em multas constituídas, sendo que apenas R$ 365 milhões foram quitados, o que representa um passivo aberto de R$ 990,7 milhões, como aponta o painel de Dados da Anatel.

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Essas sanções tiveram origem nos mais de 112 mil Processos de Apuração de Descumprimento de Obrigações (Pado) instaurados desde 1997, um tipo de procedimento administrativo que serve para a Anatel investigar denúncias de desrespeito aos direitos dos usuários ou indícios de descumprimento de alguma obrigação legal ou contratual por parte das operadoras.

A média de dias necessários para a conclusão de um Pado instaurado em 2020 foi de 246, de acordo com os dados divulgados pela Anatel. Mas esse número já foi bem pior, chegando ao pico de 2.543 em 1999. Isso significa que, de 1997 a 2020, a Anatel demorou, em média, 1.395 dias, ou 46 meses, para concluir um Pado e definir a sanção.

Estabelecido o valor da multa, as operadoras são notificadas e possuem um prazo de 75 dias para efetuar o pagamento, com possibilidade de desconto de 25%. Passado esse período sem quitação, a Anatel efetua a inclusão no Cadin (Cadastro Informativo de Créditos Não Quitados do Setor Público Federal) e encaminha o débito para inscrição em Dívida Ativa. Só então há possibilidade de exigir esse valor na justiça.

A estratégia das operadoras diante deste cenário, no mínimo, flexível, é simples. Postergar o máximo possível o cumprimento de suas obrigações, quitando as multas menores e recorrendo das maiores. É por isso que o quantitativo total de multas pagas nas últimas duas décadas foi de 37 mil, ou 56% do total, mas o valor efetivamente arrecadado foi de apenas R$ 873 milhões, segundo a CGU.

As conclusões do relatório da Controladoria Geral da União exigiram que a Anatel revisse seus procedimentos de fiscalização. Desde o ano passado, o Conselho Diretor da agência vem aprovando a conversão de multas em sanções de obrigação de fazer, de modo que as sanções sejam revertidas em investimentos diretos na instalação de redes de telecomunicação, em especial nas regiões de baixa atratividade econômica para as operadoras e que, por isso, acabam sendo esquecidas ou relegadas.

No que se refere à Vivo, duas dessas obrigações de fazer ajudam a entender como, a despeito das boas intenções de seu presidente e Fundação, a atuação da empresa vem prejudicando a inclusão digital na educação brasileira.

Nos primeiros dias de setembro de 2020, foram publicados no Diário Oficial da União dois acórdãos do Conselho Diretor da Anatel que converteram R$ 20,7 milhões de multas da Vivo em obrigações de fazer.

O primeiro deles determinou que a empresa deveria instalar estações rádio base com tecnologia 4G em 15 municípios de Minas Gerais e Rio de Janeiro, garantindo manutenção adequada e operação das instalações pelo prazo mínimo de três anos.

No segundo acórdão, a Anatel impôs como obrigação a instalação e manutenção por três anos de fibra óptica em 41 municípios a serem escolhidos dentro de uma lista prévia de nove estados brasileiros.

O detalhe é que muitas dessas localidades já deveriam ter sido atendidas pela operadora, de acordo com o Edital do 4G, realizado em 2012. Mas, por sua pobreza e baixo retorno econômico, foram preteridas.

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Mas a dívida da Vivo não termina aí. Isso porque, além das multas acumuladas, as operadoras concessionárias de serviço público também possuem um saldo devedor de investimento na universalização dos serviços de telecomunicações que beira aos R$ 3,6 bilhões. A Vivo é responsável por R$ 540,14 milhões desse total.

Em 27 de abril de 2021, a Anatel divulgou lista dos mais de 2.500 municípios e localidades que deverão receber infraestrutura necessária para acesso à internet por fibra óptica até dezembro de 2024, de acordo com o novo Plano Geral de Metas para a Universalização do Serviço Telefônico Fixo Comutado Prestado no Regime Público (PGMU V), aprovado pelo Decreto 10.610/2021.

À empresa de Gebara caberia atender 494 cidades dentro do PGMU V. Contudo, seguindo seu padrão, o movimento da Vivo foi pela postergação, apresentando, junto com as demais operadoras, pedido de suspensão da obrigação, sob alegação de supostas inconsistências na lista. O pedido foi rejeitado pelo presidente do Conselho Diretor da Anatel em decisão de 24 de maio.

Se juntarmos as metas do PGMU V com as multas impostas pela Anatel, chegaremos a um passivo total de mais de R$ 1,5 bilhão e, ao menos, 550 cidades brasileiras sem infraestrutura necessária para proporcionar acesso à internet a seus moradores porque a Vivo de Gebara não cumpre nem paga o que deve.

Diante de um orçamento público cada vez mais sufocado pelo teto de gastos, com uma crise econômica que limita a arrecadação dos estados e municípios, as multas e contrapartidas das operadoras de telefonia poderiam cumprir um papel essencial para garantir o acesso à internet à população brasileira, entendido como direito humano pela ONU desde 2011.

Quantos dos 35,6 milhões de brasileiros e 4,3 milhões de estudantes que terminaram 2019 sem acesso à internet, segundo dados do IBGE, poderiam ter vivenciado uma experiência menos excludente durante a pandemia se a Vivo pagasse sua dívida bilionária?

O Projeto Lei nº 3477/2020, aprovado em fevereiro de 2021 pelo Congresso Nacional e cujo veto presidencial foi derrubado em sessão conjunta da Câmara dos Deputados e do Senado Federal em 1º de junho de 2021, estima serem necessários em torno de R$ 3,5 bilhões para garantir internet de qualidade a 18 milhões de estudantes e 1,5 milhão de professores da rede pública de ensino durante a pandemia. Quantos destes milhões de alunos e professores seriam atendidos se a Vivo não postergasse ao máximo o cumprimento de suas obrigações?

Ao ler este artigo enquanto desfruta a sobremesa sem glúten na cobertura com vista panorâmica da Avenida Berrini, é possível que Christian Gebara não tenha todas essas respostas. Mas sabe que o passivo total de sua empresa junto à Anatel representa 20 orçamentos anuais da Fundação Telefônica Vivo, com o potencial de beneficiar 900% mais municípios dos que o atualmente atendidos pela entidade. A pergunta que fica a Gebara é: fundações como a Telefônica Vivo seriam necessárias se as operadoras cumprissem e pagassem o que devem?

Fonte: Brasil de Fato

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